domingo, 13 de março de 2011

Crash - No limite

Poucas são as vezes que nos damos ao luxo de pararmos e refletirmos sobre nós mesmos. É da condição humana deixar esquecido o que realmente somos, para agirmos de acordo com as regras impostas pelo convívio em sociedade. Essa personalidade que muitas vezes pensamos nem mais existir acabam vindo à tona, geralmente em situações das mais inapropriadas, aquelas no qual estamos enraivecidos, nervosos, descontrolados. Situações extremas, enfim. Nada mais apropriada, portanto, uma das frases de divulgação deCrash - No Limite: "Você pensa que conhece a si mesmo. Você não faz idéia".

O diretor Paul Haggis acumulou experiência suficiente para almejar algo grande o bastante para si mesmo, que acabou se traduzindo em Crash - No Limite. A partir de uma idéia surgida quando ele próprio se envolveu em um acidente automobilístico, Haggis criou um painel entrelaçando diversos personagens sem aparente conexão na Los Angeles, um dos grandes celeiros de diversidade da América atual. Los Angeles, aliás, parece ser o cenário preferido para este tipo de filme. Robert Altman já tinha utilizado a cidade em seu primoroso Short Cuts - Cenas da Vida, e Paul Thomas Anderson incrustou o subgênero no mapa com o magnífico Magnólia, um dos mais importantes filmes da década passada. Não por acaso que Haggis a escolheu para traçar sua história sobre identidade e racismo.

A forma como Haggis desenvolve sua história é crua e direta, sem qualquer tipo de concessão. Talvez, por isso mesmo, o filme seja tão curto e tão poderoso. Desde os primeiros minutos até a conclusão, a sensação que o filme passa é de excitação constante, como se a intenção fosse nos tirar o fôlego. Talvez, por nos vermos ali, em cada personagem, em cada situação apresentada. Uma, em especial, é das mais aterrorizantes para qualquer cidadão de classe média: quando uma rica dondoca humilha o seu empregado chicano. A habilidade do roteiro cria toda uma estrutura para que essa cena seja primordial para o funcionamento do filme. A mulher, fragilizada, amedontrada e só, encontra naquele homem simples uma forma de despejar toda a sua frustração com a vida. Mais comum, impossível. E por isso mesmo, tão impactante. É a classe vendo a si mesmo de forma crua e inesperada. Algo que Beleza Americana fez em um outro contexto e com outros propósitos. Mas com igual impacto.

O filme basicamente se concentra em pequenos núcleos dramáticos que aos poucos vão se relacionando e despindo as camadas que compõe cada personagem e cada situação. Temos, por exemplo, o rico casal negro que é desestruturado ao sofrer uma abusiva revista policial. Ou a amedrontada família persa que, em pós 11 de Setembro, ainda tenta fixar raízes em um país que os renega. Ou ainda a dupla de jovens negros assaltantes que fogem a qualquer estereótipo.

Não há espaço no roteiro para personagens principais. Todos são relevantes na mesma proporção, com igual importância para a trama. Todos absolutamente críveis e condizentes com seus atos - não há espaço aqui para redenção ou maniqueísmos, duas das armadilhas mais comuns nas quais o roteiro poderia se ancorar. Alguns personagens são construídos com o desenvolver da história, outros são magnificamente desconstruídos (a personagem do policial honesto é o maior exemplo).

Uma prova que atores bem dirigidos podem render muito bem em mãos seguras é Matt Dillon, na pele de um amedrontador policial, que lhe rendeu as melhores críticas de sua carreira. Ou Thandie Newton, absolutamente fantástica na pele de uma mulher em frangalhos após uma acareação, que reencontra o seu algoz no momento em que sua vida está por um fio. Há ainda que se citar Terrence Dashon Howard, como o impotente marido que não sabe o que fazer ao perceber que está perdendo sua mulher sem que possa fazer qualquer coisa para reverter a situação.

Toda essa coragem ao colocar o dedo na ferida que todos tentam esconder rendeu dividendos incalculáveis para Haggis. Seu filme, que custou apenas seis milhões de dólares, rendeu quase dez vezes mais, catapultando-o para o hall dos grandes nomes do cinema atual. Haggis conseguiu que durante duas horas nos espelhássemos naquilo que estávamos vendo e que pudéssemos parar posteriormente, respirar e analisar nossas atitutes. Talvez amanhã. Ou quando nevar novamente em Los Angeles.

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