domingo, 6 de fevereiro de 2011

Sangue negro

O fato de Sangue Negro ter sido comparado a Cidadão Kane é um evidente exagero, justificado pela ansiedade da mídia em eleger novos clássicos adultos numa Hollywood cada vez mais infantilizada. É um exagero, mas há na comparação certa razão: o incensado drama épico de Paul Thomas Anderson trata, como a obra-prima de Orson Welles, de um homem que tem tudo e ao mesmo tempo não tem nada.

O barão do jornalismo Charles Foster Kane e o pioneiro do petróleoDaniel Plainview, protagonista de Sangue Negro, personificam o sonho americano. Empreendedores natos, vencem em ambiente hostil, mas algo lhes dói na alma, esse algo que lhes falta e que o dinheiro não pode comprar. O grande mistério de Cidadão Kane é entender o significado da palavra "Rosebud", que Charles Kane balbucia no leito de morte. Qual seria o "Rosebud" de Daniel Plainview?

Livremente inspirado no romance Oil!, escrito em 1927, Sangue Negro começa em 1898, no Novo México. Daniel está em sua modesta mina de prata lutando com uma picareta para tirar algo mais do que algumas faíscas da pedra. Anos depois, por uma sorte subterrânea, brota petróleo de um dos seus buracos. Daniel se reinventa como prospector - aquele profissional que encontra terrenos metalíferos e monta ali postos de perfuração.

Acompanhado do filho de um amigo morto em serviço, bebê que Daniel adota para posar de homem de família nas mesas de negociação, o prospector chega a Little Boston, na Califórnia, onde ouviu dizer que há um oceano de petróleo debaixo da terra. Daniel tem no filho adotivo um trunfo de retórica, mas não é o único. Em Little Boston ele encontra no pastor Eli Sunday um rival da oratória à sua altura. E um rival que também tem ambições de prosperar.

Até aí tudo é introdução. As tramas começam a se mover de fato quando Daniel não deixa Eli benzer o bendito poço em Little Boston. A partir daí, como a aterrorizante trilha sonora já antevia, e como diz o imbatível título original do filme, "haverá sangue".

Ler Sangue Negro como uma confluência histórica de duas forças formadoras dos EUA - a religião e o petróleo - é uma das muitas possibilidades de interpretação que se abrem. Filme poderoso, daqueles que não nos deixam sem opinião ao final, é também um filme que cresce dentro da gente com o tempo - e com o tempo surgem novas interpretações.

O que permanece é a questão: que espécie de "Rosebud" persegue Daniel? Interpretado como se fosse uma força incontrolável da natureza pelo londrino Daniel Day-Lewis, Daniel Plainview sofre, coincidentemente, das mesmas carências afetivas de Charles Kane. Aos poucos, por baixo dos "grandes temas" de formação dos EUA, Sangue Negro se revela um filme sobre a família. Ou, no caso, sobre a ausência dela. O plano em que a câmera pega o rosto de Daniel no mar depois de pressentir a mentira do irmão não saiu ainda da minha mente.

Não é exagero dizer que o retrato crítico do empreendedorismo em Sangue Negro segue - e honra - uma filiação que remete a clássicos como Assim Caminha a Humanidade, ...E o Vento Levou, A Morte não Manda Recado, O Poderoso Chefão 2 e o próprio Cidadão Kane.

Nenhum comentário:

Postar um comentário